terça-feira, 14 de junho de 2011

A Madrasta e o Espelho - Rubem Alves

A minha primeira experiência com o autor Rubem Alves, foi recente, na verdade, hoje a noite. Quando comecei a saborear as suas doces palavras, percebi o quanto me aproximei tarde, de suas experiências, inteligência e simplicidade. 

Minha curiosidade foi despertada quando, em sala de aula, a professora mencionou que o autor de quem exponho e defendo, criticou a personagem Branca de Neve, da estória infantil, muito conhecida. A crítica foi simples: "...boba, tonta...". E sinceramente, SEMPRE achei isso, nunca a admirei. Mas, Rubem Alves qualifica outra personagem dessa estória, sim, a Madrasta e o seu espelho. Isso me intrigou, pois ele a defende, conseguindo enxergar nela uma humanidade, sem limites. Na internet, não havia essa crônica, procurei intensamente e pela primeira vez, o pai de todo internauta prático, para não dizer preguiçoso, não me auxiliou. Por isso, fiz o correto, peguei na Biblioteca o livro "O Retorno e Terno" e digitei para você leitor toda a crônica, que com certeza, embora extensa, vale muito a pena ler. Tire os seus 5 minutos e aprecie uma boa leitura.

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                A Branca de Neve é uma tonta, irritante na sua bobice. A figura que me comove por sua tragédia é a Madrasta. Se eu pudesse, mudava o nome da estória de Branca de Neve e os sete anões para a A Madrasta e o espelho. Branca de Neve é tonta e boba por não haver se olhado no espelho – se olhou, não percebeu o fascínio e o terror que moram nele. Se gosto mais da Madrasta é precisamente por isto, porque tenho longas conversas com o meu espelho – com os meus espelhos, pois são muitos...
               Ah! Você acha que isso é bobagem, que espelhos são inofensivos objetos de vidro, frios e imóveis, que nada fazem além de refletir imagens. Pois é justo aí que está o seu abismo: em seu poder de refletir. Jorge Luis Borges também tem um terror de espelhos. Diz até que lhe produzem pesadelos, pois bastam dois espelhos opostos para construir um labirinto. Faça você mesmo a experiência: brinque com os dois espelhos, um diante do outro, e veja o seu rosto se multiplicar em imagens infinitas.
                Você nunca experimentou o susto de, num restaurante, numa casa, descobrir-se repentinamente refletido num espelho, e ver-se como não gostaria, de um ângulo, de um jeito que lhe causa uma sensação de estranheza ou mesmo de vergonha? Sou assim? Edgar Allan Poe, segundo Borges, sentia a mesma coisa. E num trabalho que escreve sobre decoração de casas, ele diz que os espelhos devem ser colocados de tal forma que ninguém se veja neles refletido sem querer. Lugar certo para o espelho é no banheiro. Porque enquanto a gente vai andando na direção dele a gente tem tempo para se preparar, ficando então com a certeza de que somos nós que olhamos nele e não ele que nos observa.
                O que me faz lembrar o relato de Gustavo Corção sobre uma experiência sua, acho que na rua do Ouvidor, no Rio. Olhou na vitrine de uma livraria e viu lá dentro um senhor de cabelos brancos, rosto muito familiar, que o fitava. Cumprimentou-o respeitosamente, tirando o chapéu com a mão direita. E o rosto familiar fez exatamente a mesma coisa, ao mesmo tempo, simetricamente, só que com a mão esquerda...
                Os espelhos, segundo os mitos mais antigos, encontram-se ligados às origens do homem. Nas Sagradas Escrituras se diz que Deus criou o homem e a mulher como imagens de si mesmo, reflexos onde ele se poderia ver. E o mito de Narciso descreve a tragédia de um homem que se apaixonou por sua própria imagem, refletida na fonte. E como a imagem nunca podia se transformar em posse e desaparecia sem que seus dedos tocavam a superfície da água, ele morreu de um amor impossível.
                Os dois relatos se complementam. No primeiro, é o próprio Deus que deseja ver a sua imagem refletida...No segundo está dito que o que se busca, neste reflexo, é uma imagem que seja bela, pela qual possamos nos apaixonar. O mais profundo desejo do coração humano é isto: que sejamos belos.
                Fernando Pessoa chega mesmo a dizer que ele queria se construir como uma obra de arte. E acrescenta: “Já que não posso ser obra de arte no corpo, que seja obra de arte na alma”. Mesmo São Francisco e todos os santos, por mais espelhos de vidro que tenham quebrado, à moda da Madrasta, fizeram isto por amor a um outro espelho, divino, onde sua beleza escondida poderia brilhar. Por isto gosto da Madrasta. É nela que vejo a minha verdade refletida. Porque todos estamos à busca de um espelho que nos diga sempre: “Tu és o mais belo!”
                Ah! Se o encontrássemos seríamos eternamente felizes. Quando, ao contrário, como aconteceu com a Madrasta, a bela imagem se metamorfoseia em imagem feia, viramos bruxas e feiticeiros do mal. Quebramos o espelho e o veneno transborda do corpo...
                É assim que eu penso o amor. Amamos as pessoas não pela beleza que existe nelas, mas pela beleza nossa que nelas aparece refletida. O que é uma bela pessoa? É aquela em que nos vemos belos. Quando, ao contrário, o espelho encantado nos mostra uma imagem feia, vai-se o amor e o espelho ou é quebrado ou é colocado permanentemente num quarto de escuridão permanente. Não mais o queremos ver.
                Narciso, eu penso, é o mito mais fundamental. Mais fundamental que Édipo. Narciso dá o tema fundamental. Édipo é uma variação, um desenvolvimento. A estória da Madrasta e do Espelho é uma combinação dos dois: primeiro, a relação de amor paradisíaco, Madastra e espelho. O amor acontecia na voz do espelho que dizia: “És a mais linda”. Depois, quando a relação de encantamento é quebrada pelo aparecimento de uma outra imagem, mais bela. E a Madrasta se vê, repentinamente, excluída do espelho. E fica malvada. Toda exclusão faz isto: desperta em nós uma imagem cruel e feia, que toma conta do corpo...
                Por isto que somos mendigos de olhare. Olhos são espelhos. Cada encontro é um pedido: “Diz-me, espelho meu, haverá no mundo alguém mais belo que eu?”
                Por isto nos enfeitamos, por isto escrevemos, por isto convidamos os amigos para jantares, por isto vamos a alegres reuniões de amigos, por isto se fazem atos heróicos, por isto se escrevem poemas, por isto se fazem gestos: todos são pedidos de reconhecimento da nossa beleza.
                Entenderam por que gosto mesmo é da figura trágica da Madrasta? Porque ela revela o drama do amor, a sua alegria e a sua decomposição. Somos todos a Madrasta, em busca de uma bela imagem...

3 comentários:

Tâninha disse...

Sempre me identifiquei mais com a madrasta do que com a Branca....achei que era por ter um complexo de rejeição tremendo; mas hj lendo essa cronica, que vc carinhosamente digitou, percebo que é muito mais que isso. A madrasta por sua experiencia ja estava em outra fase da vida, a que nos percebemos substituíveis, falíveis. O medo de não mais protagonizar nossa existencia assusta muito. Obrigada por compartilhar.

vivi disse...

Fantástico!

Caminhartes Arteterapia disse...

Agradeço pelo texto e sobretudo, pelo seu trabalho correto de pesquisar a fonte... Isso foi demais.

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