quarta-feira, 22 de junho de 2011

Crônica da Saudade

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Hoje, minha vó Nice que faleceu no dia 19/06, as 23:50, completaria os seus 80 anos de idade. Deus escolheu a levar antes e deixar apenas, lembranças, saudade, muita saudade. Devido a isso, a ela dedico essa crônica, com muito amor e carinho.

       "Após levantar da cama e ver algumas chamadas não atendidas, cerca de três, pensei seriamente no que estas poderiam me dizer, mas as atrasei. Após o banho, a roupa de trabalho e perfume, prossegui ruma à rotina que se alimenta de mim e me deixa, diariamente, mais cansado. Entrei no ônibus, que me acolheu com carinho e calor, sai dele após dez minutos. A curiosidade ainda era intensa, mesmo sabendo a notícia que aquelas chamadas poderiam me trazer. Assim que recepcionei os sedentos de conhecimento, naquela fria madrugada, outra ligação, esta eu ouvi e então, eu que estava dentro de uma sala, sai para agora atender... tarde demais. Meus passos foram curtos ou as chamadas rápidas, perdi mais uma novamente. Mas, enquanto de fora da sala estava, sendo vítima daquele vento gelado e escuridão, os enfrentei, me afastei de todos para receber a notícia que a minha alma esperava recepcionar, mesmo não sabendo como. Retornei a ligação, a minha mãe atendeu e suas lágrimas que acompanhavam cada sílaba do meu nome, após citá-lo, apenas disse: “... sua avó faleceu, estou aqui no velório”. O silêncio tomou conta de mim.
       A partir daquele momento é como se duas mãos, não me pergunte de quem, rasgassem o meu peito, sem cirurgia e pudor, com intensa força que pude sentir. Toda a minha força se dissipou e por não estar concentrada em nenhuma parte de mim, entreguei-me a esse processo da vida e me deixei ser invadido. Sobrou fôlego para perguntar onde o corpo estava velado, ciente, desliguei. Pronto, agora as lágrimas sobressaíram e eu estava há poucos minutos para ensinar a alguns, o que a vida tem me deixado aprender. Deixei a alma escorrer. Em poucos minutos, num canto escuro a cirurgia foi iniciada e a vontade era gritar até que alguém corresse, nada dissesse e me abraçasse. Somente Deus naquela hora, poderia fazer isso e fez. Enxugou aquelas lágrimas, me concedeu amor e força para continuar a trajetória, nem que fosse por mais alguns minutos.
         Entrei na sala, meus olhos vermelhos poderiam ser julgados como irritados ou afetados por uma virose, mas passaram despercebidos. Iniciei uma dinâmica, em três processos, consegui sorrir e fazer com que outros dessem gargalhadas, era mágico, nada real. Assim consegui percorrer metade do plano de aula e quando a pressão interior se intensificou e ao meu redor, já estavam por perto, pessoas que poderiam me ouvir e ajudar, fui atrás de socorro. Desabafei e a comoção fez com que um movimento solidário se formasse, fui liberado das responsabilidades do dia. Meu pai do lado de fora me esperava, entrei no carro velho e fomos até o local, onde jamais esqueceria a imagem, o cheiro e todas as sensações que nele vivi.
           Todos os familiares ali estavam, alguns que nunca conheci me cumprimentavam, apresentavam os seus sentimentos, antes mesmo de eu saber o porquê dessa atitude. Caminhei em meio a olhares, comentários, fuxicos e ali estava o esperado, inesperado. Quando me aproximei e olhei o corpo, o rosto, vestido e flores, a cirurgia em processo, arrancou-me um pedaço e gritei. Tentando controlar a euforia daquele momento, cerrava os dentes para não emitir um alto som, mas não deu, tive que ser amparado por aqueles que haviam passado pelo mesmo processo, após o primeiro encontro. Não sei por quanto tempo fiquei ali sentado, chorando, mesmo ouvindo comentários de que não deveria assim proceder. Um diácono apareceu, cumprimentou a maioria, fez orações, deixou uma mensagem do evangelho e espiritualmente se despediu daquela que não conhecia, nem amava...errou até o nome por duas vezes, mas, era o seu papel, fez de forma honrosa e creio que Deus o ouviu e o capacitou. Fiquei por mais alguns minutos, confesso que esperei algum abraço conhecido e sincero me envolver, mas os que prometeram ir, não foram enquanto eu ali estava. Ainda fraco, me levantei, toquei pela primeira vez o rosto dela... frio, mais nada estava ali a não ser o corpo que fica na espera de retornar a terra para ser consumado. Refleti em tudo o que fiz enquanto seu corpo estava quente... muito pouco por mim foi feito, novamente chorei.
      O enterro foi no mesmo dia, horas mais tarde. Eu estava em casa, garantindo a excelência em um trabalho que me auxiliaria a ser aprovado naquela matéria, mas não era ali o meu lugar e nem mesmo o momento para isso, mas fiquei. O enterro passou, tive poucas notícias e eu sabia que precisava de um último encontro. No dia posterior, livre da rotina, um pouco mais descansado, no fim da tarde entrei no cemitério e comecei uma busca pelo local. Nada encontrando, meu pai que estava comigo, juntamente do meu irmão, questionou a uma coveira que passava ali perto, ela fumando o seu cigarro, com botas e roupas sujas de enterrar vários mortos, tragou por 2 vezes e nos respondeu o local e o horário em que foi o sepultamento, provavelmente, ela se despediu da minha avó trabalhando, afinal, os mortos também geram emprego.
      As flores estavam novas, várias por sinal. Uma coroa continha uma faixa dos filhos, outra coroa dos netos e bisnetos, nesta eu estava representado. Foi enterrada juntamente com o seu pai e sua mãe. Eu estava agora sobre todos eles e me sentia o menor, o menos importante. Eu queria ter dito algumas palavras, me despedir finalmente, mas ela não poderia me ouvir, se foi.  Eu esperei pelo dia de hoje, acreditei que ela viveria até hoje, quando completaria 80 anos. Hoje, eu iria beijá-la, abraçá-la, mesmo se ela não me reconhecesse. Hoje, eu iria demonstrar a ela todo o meu amor, carinho e agradecimento... esse foi o meu problema, marquei data para fazer o que talvez, ela aguarda-se todos os dias de forma espontânea... data e hora marcadas  para dizer apenas: “vó, eu te amo”.  As horas passam, normalmente marcamos hora para tudo, menos para amar. Nunca escrevi na minha agenda: “visitar a minha avó doente e encher ela de beijos...”.
     A morte sempre nos traz um sentimento que necessitamos de revisão. E claro, não somos preparados para a morte, tanto que a pergunta que mais ouvi no dia foi: “Tudo bem com você?”. Claro que não. Mas as pessoas não sabem como se comportar, o que dizer, preferem então jogar a responsabilidade para Deus e que Ele console, que Ele ajude, que Ele enxugue as lágrimas. De fato, o papel de Deus é fundamental, singular e ninguém o faz tão bem. Mesmo assim, ninguém me questionou: O que posso fazer para que você se sinta melhor hoje? Se for o silêncio, aqui fico, se for uma música, lhe empresto a voz, se for o meu toque aqui estão minhas mãos, se for uma oração, faço-lhe uma prece e lhe conduzo a Deus e se for apenas o choro, lhe acompanho nessa dor que não se passa. O carinho se intensificou nas redes sociais, aonde todos estão querendo saber da vida do outro, alem do único abraço forte e lágrimas do meu irmão.
Enfim, se eu tivesse mais alguns segundos, ou pudesse reanimá-la, diria: “Ei vó...obrigado por tudo...obrigado por ter sido mãe e pai de mim e da Aline, quando eles não puderam ser. Obrigado por investir tempo, dinheiro e tanto carinho, fazendo toda sexta-feira os doces e bolo que eu gostava, por receber meus amigos, namorada e me dar conselhos. Por rir das minhas piadas sem graça, por me xingar e logo em seguida me chamar de “bunitinho”, por as vezes, achar melhor me pedir conselhos. Por confiar em mim, na minha irmã e pais, mesmo quando lhe oferecíamos motivos para desconfiar. Obrigado por me amar e não colocar hora, nem data para isso.”
     Então após essa sincera declaração, caso quisesse, poderia eternamente dormir. Mas não foi assim e Deus sabe o porque. Dessa maneira Deus me ensinou a simplesmente amar a todos que Ele me desse oportunidade, sem esperar nada em troca. O que fica agora, são as lembranças do seu sorriso, doce sorriso, que me deixa uma dor crônica no peito e com isso fez nascer uma crônica da saudade."

terça-feira, 14 de junho de 2011

A Madrasta e o Espelho - Rubem Alves

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A minha primeira experiência com o autor Rubem Alves, foi recente, na verdade, hoje a noite. Quando comecei a saborear as suas doces palavras, percebi o quanto me aproximei tarde, de suas experiências, inteligência e simplicidade. 

Minha curiosidade foi despertada quando, em sala de aula, a professora mencionou que o autor de quem exponho e defendo, criticou a personagem Branca de Neve, da estória infantil, muito conhecida. A crítica foi simples: "...boba, tonta...". E sinceramente, SEMPRE achei isso, nunca a admirei. Mas, Rubem Alves qualifica outra personagem dessa estória, sim, a Madrasta e o seu espelho. Isso me intrigou, pois ele a defende, conseguindo enxergar nela uma humanidade, sem limites. Na internet, não havia essa crônica, procurei intensamente e pela primeira vez, o pai de todo internauta prático, para não dizer preguiçoso, não me auxiliou. Por isso, fiz o correto, peguei na Biblioteca o livro "O Retorno e Terno" e digitei para você leitor toda a crônica, que com certeza, embora extensa, vale muito a pena ler. Tire os seus 5 minutos e aprecie uma boa leitura.

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                A Branca de Neve é uma tonta, irritante na sua bobice. A figura que me comove por sua tragédia é a Madrasta. Se eu pudesse, mudava o nome da estória de Branca de Neve e os sete anões para a A Madrasta e o espelho. Branca de Neve é tonta e boba por não haver se olhado no espelho – se olhou, não percebeu o fascínio e o terror que moram nele. Se gosto mais da Madrasta é precisamente por isto, porque tenho longas conversas com o meu espelho – com os meus espelhos, pois são muitos...
               Ah! Você acha que isso é bobagem, que espelhos são inofensivos objetos de vidro, frios e imóveis, que nada fazem além de refletir imagens. Pois é justo aí que está o seu abismo: em seu poder de refletir. Jorge Luis Borges também tem um terror de espelhos. Diz até que lhe produzem pesadelos, pois bastam dois espelhos opostos para construir um labirinto. Faça você mesmo a experiência: brinque com os dois espelhos, um diante do outro, e veja o seu rosto se multiplicar em imagens infinitas.
                Você nunca experimentou o susto de, num restaurante, numa casa, descobrir-se repentinamente refletido num espelho, e ver-se como não gostaria, de um ângulo, de um jeito que lhe causa uma sensação de estranheza ou mesmo de vergonha? Sou assim? Edgar Allan Poe, segundo Borges, sentia a mesma coisa. E num trabalho que escreve sobre decoração de casas, ele diz que os espelhos devem ser colocados de tal forma que ninguém se veja neles refletido sem querer. Lugar certo para o espelho é no banheiro. Porque enquanto a gente vai andando na direção dele a gente tem tempo para se preparar, ficando então com a certeza de que somos nós que olhamos nele e não ele que nos observa.
                O que me faz lembrar o relato de Gustavo Corção sobre uma experiência sua, acho que na rua do Ouvidor, no Rio. Olhou na vitrine de uma livraria e viu lá dentro um senhor de cabelos brancos, rosto muito familiar, que o fitava. Cumprimentou-o respeitosamente, tirando o chapéu com a mão direita. E o rosto familiar fez exatamente a mesma coisa, ao mesmo tempo, simetricamente, só que com a mão esquerda...
                Os espelhos, segundo os mitos mais antigos, encontram-se ligados às origens do homem. Nas Sagradas Escrituras se diz que Deus criou o homem e a mulher como imagens de si mesmo, reflexos onde ele se poderia ver. E o mito de Narciso descreve a tragédia de um homem que se apaixonou por sua própria imagem, refletida na fonte. E como a imagem nunca podia se transformar em posse e desaparecia sem que seus dedos tocavam a superfície da água, ele morreu de um amor impossível.
                Os dois relatos se complementam. No primeiro, é o próprio Deus que deseja ver a sua imagem refletida...No segundo está dito que o que se busca, neste reflexo, é uma imagem que seja bela, pela qual possamos nos apaixonar. O mais profundo desejo do coração humano é isto: que sejamos belos.
                Fernando Pessoa chega mesmo a dizer que ele queria se construir como uma obra de arte. E acrescenta: “Já que não posso ser obra de arte no corpo, que seja obra de arte na alma”. Mesmo São Francisco e todos os santos, por mais espelhos de vidro que tenham quebrado, à moda da Madrasta, fizeram isto por amor a um outro espelho, divino, onde sua beleza escondida poderia brilhar. Por isto gosto da Madrasta. É nela que vejo a minha verdade refletida. Porque todos estamos à busca de um espelho que nos diga sempre: “Tu és o mais belo!”
                Ah! Se o encontrássemos seríamos eternamente felizes. Quando, ao contrário, como aconteceu com a Madrasta, a bela imagem se metamorfoseia em imagem feia, viramos bruxas e feiticeiros do mal. Quebramos o espelho e o veneno transborda do corpo...
                É assim que eu penso o amor. Amamos as pessoas não pela beleza que existe nelas, mas pela beleza nossa que nelas aparece refletida. O que é uma bela pessoa? É aquela em que nos vemos belos. Quando, ao contrário, o espelho encantado nos mostra uma imagem feia, vai-se o amor e o espelho ou é quebrado ou é colocado permanentemente num quarto de escuridão permanente. Não mais o queremos ver.
                Narciso, eu penso, é o mito mais fundamental. Mais fundamental que Édipo. Narciso dá o tema fundamental. Édipo é uma variação, um desenvolvimento. A estória da Madrasta e do Espelho é uma combinação dos dois: primeiro, a relação de amor paradisíaco, Madastra e espelho. O amor acontecia na voz do espelho que dizia: “És a mais linda”. Depois, quando a relação de encantamento é quebrada pelo aparecimento de uma outra imagem, mais bela. E a Madrasta se vê, repentinamente, excluída do espelho. E fica malvada. Toda exclusão faz isto: desperta em nós uma imagem cruel e feia, que toma conta do corpo...
                Por isto que somos mendigos de olhare. Olhos são espelhos. Cada encontro é um pedido: “Diz-me, espelho meu, haverá no mundo alguém mais belo que eu?”
                Por isto nos enfeitamos, por isto escrevemos, por isto convidamos os amigos para jantares, por isto vamos a alegres reuniões de amigos, por isto se fazem atos heróicos, por isto se escrevem poemas, por isto se fazem gestos: todos são pedidos de reconhecimento da nossa beleza.
                Entenderam por que gosto mesmo é da figura trágica da Madrasta? Porque ela revela o drama do amor, a sua alegria e a sua decomposição. Somos todos a Madrasta, em busca de uma bela imagem...
 

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