AUTOPORTRAIT
A VISÃO DE SI
OLHOS
Estou conhecendo uma nova pessoa,
sua história tem me chamado a atenção. Filho bastardo, não planejado e
aguardado com expectativas e sorrisos. A vida o convidou antes mesmo do
nascimento, para ser vítima e assim se comportar, carente de atenção,
reconhecimento e prestígio. Sua infância, lembrada mais por fotos do que por
simples e agradáveis memórias, passou rápido, na verdade, ele não conseguiu me
dizer se realmente viveu as brincadeiras, as estórias, narrou até hoje apenas a
sua convivência com primos, os demais eram adultos, de fala difícil, responsabilidades
e preocupações. Tem uma irmã, agora um sobrinho, uma mãe, um pai, teve uma avó
e só, a família se baseia nestes, poucos convidados para qualquer festa de
formatura ou casamento, até porque, os primos estacionaram no passado, sim,
segundo ele amigos vieram, mas o último agora, partiu através de carta, escreveu
algumas páginas e foi voar... Em lágrimas me disse que foi sempre assim, uma
única pessoa se aproxima, se torna fonte, mas se esgota e fim.
Em nossa última conversa, o
conheci muito e soube que há muito mais para ser ouvido. Contou-me sobre uma
adolescência complicada, chegou a ser obeso, criticado, se perdeu na sua
identidade, ora era preto, depois cômico, outrora branco... Acontece quando se
ado(l)e(s)ce. Disse de fases difíceis, casa sem luz, banhos frios e velas
espalhadas e que a comida, nunca faltou, mas por várias vezes, teve vontade de
ter e nada teve. Apegou-se então a Deus, crises acabam se tornando convites e
foi o que aconteceu. Família católica, não tradicional, rezava o credo, o terço
as terças, missa televisiva. Meu conhecido foca em um terço azul que teve,
ficava na sua cama, presente familiar e ali, diariamente quando escurecia, as
mãos e desejos passavam por aquelas bolinhas, com muita ordem e temor. Tornou-se
então religioso, foi trazer dinheiro para a sua casa através de arte cênica,
conheceu uma garota, pequena garota, do sorriso bonito que lhe apresentou a
Bíblia e Jesus, me pareceu observando-o, que sente saudades... não sei se é da
garota ou da Bíblia, talvez de Jesus. A Bíblia em sua casa iluminou a podridão,
segundo ele. Coisas horríveis aconteceram, boas também, pessoas admiráveis conheceu
que o auxiliaram muito, viajou, morou no mesmo Estado, mas saiu da família, do
quarto, foi fazer amigos, conhecer gente nova e estudar Deus (pausa) como é que
é? Questionei. Quando fui estudar Deus,
Ele me estudou. Respondeu. E como Deus estuda agente? Novamente, indaguei. Ele senta do nosso lado, questiona e as respostas
aparecem. Disse. Simples assim? Satirizei. Não é simples aceitar respostas sobre você, até porque, eu não queria
ouvir várias delas. Levantou as sobrancelhas, lábios juntos do lado direito
e me encarou. E ouviu... Foi atrás por quê? O acompanhei na expressão. Queria mudar em mim, o que homem nenhum
consegue a não ser quem O fez. Hum. E? Mudou o que então? Insisti. Silêncio...lágrimas
brotaram e me responderam, parecia que a mudança estava encaixotada.
Depois de alguns minutos, saída
para o banheiro e cozinha, voltou com um copo de suco, me ofereceu, neguei, ele
sentou na cama e foi dizendo que devido a desorganização familiar,
constantemente presente, desde os 11 anos planejava casar. Se apaixonou, ela
tinha uma irmã gêmea, as vezes as confundia, raras vezes. O primeiro beijo, no
shopping da cidade, antes a preparação bucal recebeu balas fortes, talvez
metade do pacote, o resultado foi um beijo babado, consequência dos lábios sedados,
mortos. Mas foi bom, inesquecível. E comprou um caderno e neste, números de
imobiliárias da cidade, queria uma casa. (pausa) Casa??? Pra...?? Casar...ja disse. Riu. Você beijou a
garota uma única vez, comprou um caderno e queria casa pra casar? Minha boca
estava aberta, aguardando resposta. Sim,
aquela garota representava naquele momento o convite para uma fuga. Foi
parando de rir, olhando nos meus olhos. E um garoto de 11 anos queria fugir
para onde? Suspendi as mãos no ar, insatisfeito. Para onde o sonho dele o chamava. Poetizou. Seu sonho em meados de
1998, deveria ser os do Fantástico Mundo De Bob, ou de ser apresentador do Disney
Club e não de casar...lembra não, da TV Cruj?? Tentei mudar o assunto. Lembro sim, eu dava tchau quando eles
finalizavam “Cruj, Cruj, Cruj, tchau.” Ele me acompanhou no raciocínio e
lembrança. Mas mesmo com a separação dos
meus pais, eu queria casar. Não adiantou, ele retomou. Deve ter sido
dolorido pra você né, pai de um lado, mãe de outro? Acompanhei. Foi sim,
mas a separação territorial foi apenas a interpretação do ensaio interno.
Sei.
Continuou entre os goles de suco,
falando sobre a primeira garota. Disse que quando ela mudou de colégio a
esperou por alguns anos, até completar os 14, sempre em contato por telefone,
até que foi menosprezado. Depois, quase aos 15, conheceu uma garota de rosto
angelical, quase desvirginou-se, mas nada além ocorreu, embora descobriu
reações do corpo que gostou. A primeira traição. Então, nessa época, com quase
16 anos, apareceu a garota da Bíblia e ficaram íntimos. Se conheceram bem,
ocultaram uma paixão que foi revelado a poucos, como pecado, tanto que foi
confessado e arrependido. (pausa) Foi em um confessionário?? Ri baixo. Quase... Ele riu alto. Dessa confusão
momentânea, ficaram grandes amigos, mas a garota hoje, já está casada e bem
distante e segundo ele, não sabe sequer a cor do cabelo, nem se já está
gravida. E então, ele citou a palavra amor... Foi a primeira vez. (pausa) E
amou virgem? Escondi a risada. É...nunca
transamos. Mãos ali e acolá, beijos e desejos, nada mais. Mas eu sei que amei,
de verdade. Foi intenso, me entreguei completamente, acreditava piamente de que
naquele momento eu sonhava e vivia o sonho de Deus para a minha vida e ela também.
Era linda, eu gostava dos seus cabelos,
sua maturidade e carinho. Conseguia enxergar a mãe dos meus filhos. Desabafou.
Caramba, e ai? Fiquei surpreso com tanta emoção. E ai que errei...muito. No papel de pai e não de filho da família,
adoeci, disse bobagens, queria afastá-la daquela vivência, sem perde-la...mas
experimentei o que Deus deu aos homens: livre-arbítrio. Fui traído. Um riso
forçado apareceu. É meu novo amigo, os dias de hoje são difíceis e mulher está
mais arisca que homem. Tentei aliviar. Não,
não...me desculpe. Quem me traiu foi o amor e não ela. Pensei que o amor era
pra sempre e que tudo suportava. Mas aquele amor, desistiu de amar. Não
suportou, não soube contemplar o insano e ser paciente. O amor me traiu. Os
olhos dele entravam em mim. É...entendo. “Quanto tempo leva o coração, pra
saber, que o sinônimo de amar é sofrer?” Disse o poeta Zé Ramalho, não é mesmo?
Cantei desafinado para quebrar o clima. Gosto
muito dessa música. Apreciou. Mas, na
voz do Zé Ramalho. Desqualificou.
Eu gostei dele. Não no sentido
atrativo, se é que me entende. Você me entende. Gostei de sua história, ficaria
ali por horas ainda ouvindo, mas percebi que o suco havia acabado, as risadas
haviam diminuído, estava tarde e ele tinha voltado a cozinha, questionando em
alta voz se eu estava com fome, neguei, ele retornou, pediu licença e foi para
o banheiro. Banho. Estava de saída, afinal era sábado. Cara, eu vou indo nessa.
Afirmei. Calma ai, vou só tomar um banho
rápido, preciso ir correndo encontra-la, estou um pouco atrasado, dai vamos
juntos. Ele suplicou. Tudo bem. Concordei. Ele não tinha falado sobre
namorada, ainda. Mas estava de aliança e na beira da cama, um porta-retratos
sem foto, deitado, me aproximei, do lado uma foto, com ele na imagem, uma linda
garota de belo sorriso, atrás da foto um código: ICO13.7. Leigo, fiquei curioso,
pensei em perguntar, ele apareceu na porta de forma “Mestre dos Magos” e disse:
Essa beleza era a que faltava no meu jardim
pisoteado. Quanto a descrição atrás, te explico no caminho. E foi enxugando
e colocando a roupa, além de ler meus pensamentos. Senti medo e curiosidade. Havia muito segredo em seus olhos.